segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Resgate de uma dívida

Publicado em 20 de novembro de 2010

Por Suindara Alexandre
e Humberto Wilson

Oito anos após ser firmada a data que celebra o Dia da Consciência Negra no Brasil, sociedade ainda ignora necessidades reais de um País e uma cultura construída com o suor e o sangue dos escravos e foca implantação de um feriado simbólico que, apesar de merecido, não apaga a desigualdade secular

A data foi proposta pelo poeta, historiador e pesquisador gaúcho negro Oliveira Silveira, em 1971, e apenas recentemente foi tratada com a ótica séria que merecia: hoje é Dia da Consciência Negra. Silveira fazia parte do Grupo Palmares, um dos precursores do movimento negro moderno. Em 1978, a assembleia do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUDR), realizada na Bahia, aprovou o 20 de novembro como dia oficial de celebração da comunidade negra brasileira. O Rio de Janeiro foi a primeira cidade a decretar o Dia da Consciência Negra como feriado oficial em 1995. Em 2003, foi sancionada uma lei federal que não só incorporou a data no calendário escolar das redes pública e privada, mas tornou obrigatório o ensino sobre a história e a cultura afro-brasileira.
Aos 20 dias do mês de novembro do anos de 1695, Zumbi, o líder mais conhecido do Quilombo dos Palmares, foi assassinado e teve seu corpo exposto em praça pública. A morte do líder revolucionário e a exposição do seu cadáver, ao invés de provocar medo nos quilombolas, apenas atiçou sua revolta e endureceu a resistência do povo negro e seus simpatizantes. Escolher o dia da morte de Zumbi como o Dia da Consciência Negra tinha um objetivo claro: substituir o 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura, como data de reflexão sobre o passado, presente e o futuro dos negros brasileiros. Nesta data, 20 de novembro, portanto, não se comemora a liberdade conseguida passivamente, mas uma tomada de consciência do povo negro, seu valor e sua contribuição para o Brasil.
O fim de um sistema abominável teve origens no final do século 19, de forma necessária, porém precária. Em 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que abriu as senzalas e despejou os ex-escravos na rua sem nenhum direito garantido. Naiara Rodrigues Silveira, filha de Oliveira Silveira, afirma que essa data não trouxe nenhuma dignidade para o povo negro. “O 13 de maio representa, para a população negra, um grande engodo”, esclarece ela. Daí a necessidade de se procurar um outro dia que fosse relevante na história do negro brasileiro. Naiara enfatiza que “o Dia da Consciência Negra veio exatamente para marcar uma tomada de consciência de quem nós somos, através do fortalecimento de nosso identidade”. O coordenador da Central Única das Favelas em Goiás – Cufa-GO –, MC Dyskreto, concorda com Naiara. “O dia é importante para a questão da igualdade racial e de gênero, pois se o negro é discriminado, a negra é muito mais. Não é uma data apenas para se criar um feriado, mas para lembrar como nossos antecedentes sofreram no Brasil. Há menos de 100 anos ainda existia escravidão. Isso é algo que devemos sempre pensar, buscar soluções para acabar com a desigualdade”, explica. O rapper revela que há uma certa incoerência no que determina a aplicação ou não de feriados. “É um dia importante e julgo que há feriados religiosos desnecessários, que certamente não abrangem todas as religiões, e esse influenciou diretamente na história do País.”, opina.

Atividades culturais
Muitas entidades, como o Movimento Negro e a Cufa, organizam palestras, eventos educativos e culturais não só no dia 20 de novembro. Algumas promovem a Semana e até o Mês da Consciência Negra. Vários temas são debatidos, como inserção do negro no mercado de trabalho, cotas universitárias, discriminação na polícia e Justiça, identificação de etnias e até moda, beleza e autoestima negras.
Em Goiânia, a Assessoria Especial de Políticas para a Igualdade Racial planejou um mês inteiro de atividades que envolvem esses temas e tem a participação de alunos da rede municipal de ensino. De hoje até sexta-feira da semana que vem, dentro das atividades programadas pela assessoria, acontece a mostra Cinema e Consciência Negra no Cine Goiânia Ouro que fica na Rua 3, esquina com a Rua 9, no Centro. As sessões têm início sempre às 12h30, 15h e 20h e os ingressos custam apenas R$ 1. Serão apresentados filmes e animações que evidenciam uma representação positiva das pessoas negras a fim de quebrar esteriótipos racistas.
Logo mais, às 15 horas, a Cia. Teatral Zumbi dos Palmares promove um ato público político artístico e cultural na Rua 8 e no Teatro Liberdade, no Centro. A tarde conta com apresentações de hip-hop, capoeira, teatro, pagode, além da participação da banda de percussão Visual Ylê. O diretor artístico Paulo Vitória garante que qualquer artista que comparecer e quiser mostrar seu talento terá espaço garantido. Intelectuais, representantes da Cufa-GO darão seu recado e o microfone está aberto a todos.

Ilegalidade
A legislação federal não decreta que o dia de hoje seja feriado, mas muitos municípios possuem leis que fazem isso. Inclusive, a Câmara Legislativa de Goiânia aprovou uma lei que tornou o Dia da Consciencia Negra feriado em abril de 2009. A lei foi aprovada, apesar do veto do então prefeito Iris Rezende. Em novembro do ano passado, o Ministério Público propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). O comércio funcionará normalmente no Dia da Consciência Negra até que seja divulgada uma decisão final. Os tribunais de Justiça gaúcho e do Distrito Federal têm decisões que reconhecem a ilegalidade nos mesmos termos questionados em Goiás.
O problema é que os municípios só podem declarar feriados religiosos ou relativos à fundação das cidades e este dia comemorativo de hoje não preenche nenhum desses requisitos. O promotor de Justiça Eduardo Abdon Moura, que peticionou o Adin, assegura que “não se trata de ir contra a data em si, mas da legalidade da sua aprovação pela câmara”. O tema tem causado polêmica e o feriado é defendido com unhas e dentes por vários vereadores. Analisando essa disputa, pode-se ver que, mais uma vez, os políticos perdem o foco e defendem causas que mais tem a ver com tirar mais um dia de folga do que realmente discutir a ainda forte discriminação e opressão sofridas pelas pessoas negras.

Cinema e Consciência Negra
Quando: de hoje a 26/11, das 12h às 22h
Onde: Cine Goiânia Ouro – Rua 3, esquina com Rua 9 – Centro
Ingressos: R$ 1 por sessão
Informações: (62) 3524-2356 / www.asppir.wordpress.com

Ato Público
Quando: hoje, a partir das 15h
Onde: Teatro Liberdade e Rua 8 – Centro
Ingressos: entrada franca

"Eu vejo a injustiça. Falo como vejo as coisas. A polícia é preconceituosa”
Mano Brown,"
rapper do Racionais MC’s

"Há feriados religiosos desnecessários, que não abrangem todas as religiões, e esse se trata de algo que influencia toda a história do País”
MC Dyskreto,
coordenador da Cufa-GO

"Somente o tempo, a educação e um monte de boas escolas farão o racismo acabar”
 Nat King Cole,
músico norte-americano

"Temos o 1º presidente negro americano. Podem dizer que não teve nada a ver, mas é pedra sobre pedra que essas coisas vão sendo construídas”
Gilberto Gil,
músico

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